1.ª edição.
Conferência sobre o ofício de escritor - o seu ambiente e método de trabalho, e as suas motivações -,
que o autor ilustra com o exemplo de algumas insignes figuras das
letras portuguesas com quem privou, como Aquilino Ribeiro e Fernando Pessoa , discorrendo também sobre o "ofício" de Camilo Castelo Branco, Raul
Brandão, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão.
"Há
um par de bons anos, quando vim a primeira vez de visita ao vosso
vizinho Aquilino, trazido pela curiosidade de o ver na casa da Soutosa,
longe do Chiado janota que ele animava com a sua forte presença de
serrano e onde com ele convivi, reparei então, sobre a mesa de trabalho,
anichada junto ao vão da janela que dá para o recolhido pátio das
tílias, naquele retrato de Balzac - gordo e e colarinho aberto, a mão
enfiada na carcela da camisa, cabelo revolto, face robicunda, parece que
ao mesmo tempo radiante e lívida da insónia - mostrando-se, como após
uma dessas suas frequentes alucinações criadoras, em que dia e noite, o
possesso, não largava mão da pena. [...] Nessa ocasião, debrucei-me
sobre a fotografia e quando em silêncio volvi os olhos para Aquilino, o
velho amigo sorriu-me, com certa sombra de irreprimível melancolia no
rosto aberto e franco, para dizer, encolhendo resignadamente os ombros:
- La bête de somme.
Deste
modo designam os franceses o animal de carga. Tinha ali, diante dos
olhos, a boa imagem tutelar, e não foi o génio do romancista que naquela
hora para mim evocou, mas o sacrifício exemplar da acérrima e
obsidiante vida de trabalho, a desentranhar-se no tumulo torrencial de
ficção com que criou a obra ao mesmo tempo prodigiosa e avassaladora.
Sentado à banca, esquecido de tudo, sem contar as horas que corriam, não
lograva sossego enquanto o caudal abundantíssimo lhe acudia à
imaginação, nos conflitos e enredos humanos que o tentavam. [...]
Também
Aquilino nos deixou a lição varonil e admirável de uma vida longa de
trabalho, no apelo instante da tarefa a realizar. - Ai, as horas
perdidas! - Mas o escritor das Terras do Demo impunha-se como
outra espécie de homem, hercúleo, sadiamente fecundo e pertinaz,
radiante de poder e energia, cuspindo cada manhã com afoiteza nas mãos,
bom cavador que pega na enxada - era este o símile de trabalho que mais
lhe agradava - e de sol a sol, ano após ano, revolve o chão áspero da
sua leira. De tal modo assim era, valente e rijo, que naquela hora,
confesso, não foi o seu ensinamento e castigo de vida que me acudiram à
lembrança, mas antes as tormentadas e negras noites do desafortunado
homem de São Miguel de Seide - lugar aonde eu, da Soutosa, tencionava ir
em peregrinação. A inexplicável pena desse condenado, desde logo, em
evidente paralelo, me assaltou ao espírito. De outro assim não reza a
nossa história literária.
Com
efeito, se quereis exemplo, entre nós, da vida verdadeiramente
dramática de um galeote das letras, a cavar com génio e lágrimas o
escasso pão do seu sustento e a glória de um grande escritor, lembrai a
servidão de Camilo, mormente nesses anos amargurados de Seide, acossado
de dores e desesperações, até ao martírio de cegueira. [...]
...
Vejamos, noutro exemplo, como foi a existência e a devoção de um grande
poeta. Para tanto, consenti que vos evoque a figura de Fernando Pessoa,
com quem alguns anos convivi, trazendo-vos o meu comovido testemunho.
Esse, podemos dizer que nem banca nem oficina - o vaguear a esmo pelas
ruas, o cogitar sem descanso nos seus sonhos, rendido à obra
extraordinária, que depois da morte lhe foram encontrar arrecadada num
baú, e é um dos belos luzeiros do nosso tempo. Para mais nada vivia,
absorto na cisma, na indiferença completa do mundo, soltando-se do
cárcere em que nos prendem, como imponderável sombra que se evade.
Encontrávamo-nos
à tardinha, quando ele acabava as ocupações do seu ganha-pão, correndo
escritórios de exportadores, a quem traduzia a correspondência
comercial. Naquelas tarefas angariava um salário magro - quanto lhe
bastava. Aparecia e sentávamo-nos, então, à mesa de um café barulhento,
e, se para aí estavam virados os ventos, partíamos para algum gostoso
jantar de taberna. [...] Caminhava com o seu passo tíbio, as calças um
pouco arregaçadas a deixar ver o tornozelo, e aquele riso fungado que se
misturava às palavras tímidas, discretas, pronunciadas talvez a medo,
ou no intento de que na noite se diluíssem sem fazer eco. O rosto
alongado, o olhar turvo de míope a entreluzir através dos óculos - assim
era e foi o mais benigno dos companheiros, na comovedora singeleza da
alma quase inocente.
Confessara certa vez que os poemas lhe aconteciam..."
(Excerto da Palestra)
Manuel Joaquim Mendes
(1906-1969). "Escritor, artista plástico e resistente antifascista,
nasceu em Lisboa a 18 de Janeiro de 1906, cidade onde também faleceu, em
4 de Maio de 1969. Manuel Mendes fez largas incursões nas artes
plásticas, mas destacou-se sobretudo pela sua atividade literária,
colaborando em numerosos jornais e revistas, como a Seara Nova, a
Revista de Portugal, a Vértice, e os jornais O Século, Primeiro de
Janeiro, A Capital e República. Como escultor, Manuel Mendes participou
no Salão dos Independentes e nos dois salões de 1946 e 1947 da Exposição
Geral das Artes Plásticas, organizada pela Sociedade Nacional de Belas
Artes. A sua casa foi sempre ponto de encontro de muitos dos seus amigos
e companheiros, sendo instituída em 1977 a Casa-Museu Manuel Mendes."
(Fonte: Wook)
Exemplar brochado em bom estado geral de conservação.
Raro.
Com significado histórico e literário.
20€
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