14 setembro, 2023

MENDES, Manuel -
SOBRE A OFICINA DO ESCRITOR.
Palestra realizada no Clube dos Rotários de Viseu, aos 23 de Junho de 1966. Viseu, [s.n. - Tip. Guerra - Viseu], 1967. In-4.º (23,5 cm) de 15, [1] p. ; B.
1.ª edição.
Conferência sobre o ofício de escritor - o seu ambiente e método de trabalho, e as suas motivações -, que o autor ilustra com o exemplo de algumas insignes figuras das letras portuguesas com quem privou, como Aquilino Ribeiro e Fernando Pessoa , discorrendo também sobre o "ofício" de Camilo Castelo Branco, Raul Brandão, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão.
"Há um par de bons anos, quando vim a primeira vez de visita ao vosso vizinho Aquilino, trazido pela curiosidade de o ver na casa da Soutosa, longe do Chiado janota que ele animava com a sua forte presença de serrano e onde com ele convivi, reparei então, sobre a mesa de trabalho, anichada junto ao vão da janela que dá para o recolhido pátio das tílias, naquele retrato de Balzac - gordo e e colarinho aberto, a mão enfiada na carcela da camisa, cabelo revolto, face robicunda, parece que ao mesmo tempo radiante e lívida da insónia - mostrando-se, como após uma dessas suas frequentes alucinações criadoras, em que dia e noite, o possesso, não largava mão da pena. [...] Nessa ocasião, debrucei-me sobre a fotografia e quando em silêncio volvi os olhos para Aquilino, o velho amigo sorriu-me, com certa sombra de irreprimível melancolia no rosto aberto e franco, para dizer, encolhendo resignadamente os ombros:
- La bête de somme.
Deste modo designam os franceses o animal de carga. Tinha ali, diante dos olhos, a boa imagem tutelar, e não foi o génio do romancista que naquela hora para mim evocou, mas o sacrifício exemplar da acérrima e obsidiante vida de trabalho, a desentranhar-se no tumulo torrencial de ficção com que criou a obra ao mesmo tempo prodigiosa e avassaladora. Sentado à banca, esquecido de tudo, sem contar as horas que corriam, não lograva sossego enquanto o caudal abundantíssimo lhe acudia à imaginação, nos conflitos e enredos humanos que o tentavam. [...]
Também Aquilino nos deixou a lição varonil e admirável de uma vida longa de trabalho, no apelo instante da tarefa a realizar. - Ai, as horas perdidas! - Mas o escritor das Terras do Demo impunha-se como outra espécie de homem, hercúleo, sadiamente fecundo e pertinaz, radiante de poder e energia, cuspindo cada manhã com afoiteza nas mãos, bom cavador que pega na enxada - era este o símile de trabalho que mais lhe agradava - e de sol a sol, ano após ano, revolve o chão áspero da sua leira. De tal modo assim era, valente e rijo, que naquela hora, confesso, não foi o seu ensinamento e castigo de vida que me acudiram à lembrança, mas antes as tormentadas e negras noites do desafortunado homem de São Miguel de Seide - lugar aonde eu, da Soutosa, tencionava ir em peregrinação. A inexplicável pena desse condenado, desde logo, em evidente paralelo, me assaltou ao espírito. De outro assim não reza a nossa história literária.
Com efeito, se quereis exemplo, entre nós, da vida verdadeiramente dramática de um galeote das letras, a cavar com génio e lágrimas o escasso pão do seu sustento e a glória de um grande escritor, lembrai a servidão de Camilo, mormente nesses anos amargurados de Seide, acossado de dores e desesperações, até ao martírio de cegueira. [...]
... Vejamos, noutro exemplo, como foi a existência e a devoção de um grande poeta. Para tanto, consenti que vos evoque a figura de Fernando Pessoa, com quem alguns anos convivi, trazendo-vos o meu comovido testemunho. Esse, podemos dizer que nem banca nem oficina - o vaguear a esmo pelas ruas, o cogitar sem descanso nos seus sonhos, rendido à obra extraordinária, que depois da morte lhe foram encontrar arrecadada num baú, e é um dos belos luzeiros do nosso tempo. Para mais nada vivia, absorto na cisma, na indiferença completa do mundo, soltando-se do cárcere em que nos prendem, como imponderável sombra que se evade.
Encontrávamo-nos à tardinha, quando ele acabava as ocupações do seu ganha-pão, correndo escritórios de exportadores, a quem traduzia a correspondência comercial. Naquelas tarefas angariava um salário magro - quanto lhe bastava. Aparecia e sentávamo-nos, então, à mesa de um café barulhento, e, se para aí estavam virados os ventos, partíamos para algum gostoso jantar de taberna. [...] Caminhava com o seu passo tíbio, as calças um pouco arregaçadas a deixar ver o tornozelo, e aquele riso fungado que se misturava às palavras tímidas, discretas, pronunciadas talvez a medo, ou  no intento de que na  noite se diluíssem sem fazer eco. O rosto alongado, o olhar turvo de míope a entreluzir através dos óculos - assim era e foi o mais benigno dos companheiros, na comovedora singeleza da alma quase inocente.
Confessara certa vez que os poemas lhe aconteciam..."
(Excerto da Palestra)
Manuel Joaquim Mendes (1906-1969). "Escritor, artista plástico e resistente antifascista, nasceu em Lisboa a 18 de Janeiro de 1906, cidade onde também faleceu, em 4 de Maio de 1969. Manuel Mendes fez largas incursões nas artes plásticas, mas destacou-se sobretudo pela sua atividade literária, colaborando em numerosos jornais e revistas, como a Seara Nova, a Revista de Portugal, a Vértice, e os jornais O Século, Primeiro de Janeiro, A Capital e República. Como escultor, Manuel Mendes participou no Salão dos Independentes e nos dois salões de 1946 e 1947 da Exposição Geral das Artes Plásticas, organizada pela Sociedade Nacional de Belas Artes. A sua casa foi sempre ponto de encontro de muitos dos seus amigos e companheiros, sendo instituída em 1977 a Casa-Museu Manuel Mendes."
(Fonte: Wook)
Exemplar brochado em bom estado geral de conservação.
Raro.
Com significado histórico e literário.
20€

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