1.ª edição.
Obra polémica de um "padre ateu". Divulgada postumamente, alcançaria notoriedade após a sua publicação parcial por Voltaire, em 1762.
"Este livro que ora apparece precisava de mais alguma cousa a prefacia-lo que d'uma ligeira noticia por mim escripta, rapidamente , despretenciosamente, na lufa-lufa que constitue o meu trabalho quotidiano, sem estudo nem disposição moral.
É um livro que devia ser lançado, espalhado, vulgarizado, como uma obra capaz de formar consciencias e de fortalecer cerebros, lançando as bases d'uma sociedade nova, desacorrentada de preconceitos, illuminada por uma razão livre e por uma moral sã. [...]
Quem foi Meslier?
O que é a sua obra?
João Meslier, filho d'um operario e nascido em 1678[?], foi cura de Etripigny (Champagna), bondoso mas reservado como esses tantos romances nos teem feito visionar á frente d'aldeias povoadas de selvagens bons.
Simples e modesto, não accumulou fortuna á custa dos sacrificios e do fanatismo estupido dos crentes na religião que elle, por officio, serviu.
Cumpridor dos seus deveres, de poucas falas, observador escrupuloso da castidade, dava, todos os annos, aos pobres o que lhe restava das suas despezas.
Morreu em 1733[?], com cincoenta e tantos annos. Suppoz-se que, desgostoso da vida, se abstivera propositadamente de se alimentar, porque, durante a doença, não quiz tomar nada.
Morrendo, deixou o pouco que possuia aos seus parochianos. Em sua casa, encontraram-se trez manuscriptos, de trezentas e tantas folhas cada um, intitulados O meu testamento. Eram trez exemplares da mesma obra.
Junto d'um d'esses exemplares - o que era dedicado aos seus parochianos - via-se um papel com estas palavras:
«Vi e reconheci os erros, os abusos, as vaidades, as loucuras e a malvadez do homem; tenho-os odiado e detestado; não ousei dize-lo durante a vida mas dilo ei moribundo e depois da morte, e é para que o saibam quee faço e escrevo a presente memoria, para que possa servir de testemunho de verdade a todos que a virem e lêrem, se lhes parecer conveniente.»
O Bom Senso é a parte mais importante d'essa memoria e é a que apparece em portugues.
Livro d'um padre, livro sincero, d'um padre bom, que viveu moderadamente, o Bom Senso, como obra de logica, como obra realmente de bom senso, é, todavia, mais que a refutação da sciencia da mentira denominada theologia. É a sua condemnação em forma, é a sua exauctoração solemnissima."
(Excerto de Uma noticia)
Relativamente a esta obra e ao seu autor, com a devida vénia a Hervé Baudry pelo excelente artigo publicado no n.º 20 da Revista Lusófona de Ciência das Religiões (2017), infra deixamos um excerto do mesmo.
Jean Meslier [Mazerny, 15 de junho de 1664 - Étrépigny, 17 de junho de 1729], "pároco, ou cura, de uma aldeia do norte da França, não foi o primeiro
ateu da história na era cristã. Também não foi o primeiro homem da história da
humanidade que exprimiu uma visão pura e exclusivamente desencantada, ateia, do
mundo e da existência. Tinha trinta anos quando nasceu Voltaire (1694-1778),
tornou-se padre em 1688 e no ano seguinte instalou-se na sua paróquia,
Etrépigny, para aí morrer quarenta anos mais tarde, em 1729, deixando para os
vivos a sua obra manuscrita. Define-se este autor como inteiramente póstumo. O
título do seu texto é Mémoire des pensées et des sentiments de J... M... [...]
pour être adressé à ses paroissiens après sa mort pour leur servir de
témoignage de vérité [...]
Os pensamentos e sentimentos de Jean Meslier espalharam-se
rapidamente após a sua morte, conhecendo o destino dos manuscritos
clandestinos, isto é passando a ser copiados.
Meslier tinha deixado três cópias autógrafas, que
apresentam entre si algumas diferenças de pormenor. As cópias dessas cópias
nunca são idênticas. Mas esta obra não foi conhecida à grande escala através da
integral, mas de extractos correspondendo a menos de dez por cento do original que
também se multiplicaram e circularam cedo no mundo francófono do século XVIII.
E é a partir de um desses extractos que Voltaire, em 1762, publica o seu
próprio extracto, encurtando ainda mais e suavizando o teor do original.
Portanto o verdadeiro Meslier não chegou ao público das Luzes em geral. Ficou
ateísta de pena. Quanto ao chumbo, passou a divulgar um pensamento falsificado.
Nesta tendência, nenhum filósofo, radical ou não, assumiu a obra. Sob o nome de
Meslier, D’Holbach inventou um texto, O Bom senso do cura Meslier, que teve
êxito até o século XX. [...]
A célebre frase de um homem do povo relatada por Meslier,
ilustra o extremismo já mais que moderno ao lado do qual o voltairianismo ocupa
de pleno direito o seu lugar de pensamento pequeno-burguês dos futuros Homais.
Este homem, escreve o autor, «gostaria de ver todos os grandes da Terra e todos
os nobres enforcados e estrangulados com tripas de padres».
O Mémoire de Meslier é a obra secreta de um homem só que
sabe não ser o único a pensar dessa maneira. Numerosos, pensa ele, são os
sábios que partilham as mesmas verdades sobre as imposturas que denuncia, mas
ficam calados. Ele fala por todos, querendo «poder fazer ouvir a [sua] voz».
Talvez o seu sofrimento seja mais forte neste aspecto do que do lado psicológico.
É uma profunda dor intelectual. A sua voz não faz ouvir um de profundis. A
certeza absoluta de deter a verdade, como outros, fundamenta a argumentação
materialista e ateia. É movido por uma energia e convicção de homem vivo que
não teme a morte. A morte, na reapropriação da palavra ateia em Meslier, é o
facto que faz a mediação entre ele, escritor clandestino, e o espaço público. O
seu Mémoire é um testemunho. E passou, a partir da segunda edição, anónima, do
Extrait de Voltaire (Genebra, 1762) por um testamento, para ficar como o título
da edição de 1864. Memória, testemunho, testamento. […] Para Jean Meslier, o
escândalo da verdade era para explodir, e não para circular como qualquer
rumor. Para ele, o ateísmo não é uma doença vergonhosa. Daí o carácter
provisional da declaração e a sua encenação através da revelação póstuma.
O livro é tudo, o autor nada. O Mémoire acaba com estas
palavras: «Termino pois isto com o nada. Também já sou pouco mais que nada e,
em breve, não serei nada.» Este niilismo não deve passar por marca de
desespero, mas antes pelo seu contrário. É precisamente a expressão nas suas
próprias palavras do anti-idealismo e do radicalismo ateu."
(BAUDRY, Hervé. Universidade Nova de Lisboa, Anticlericalismo : Ateísmo de pena, ateísmo
de chumbo. Jean Meslier entre o silêncio e a explosão. REVISTA LUSÓFONA DE
CIÊNCIA DAS RELIGIÕES – nº20 (2017))
Encadernação em meia de percalina com ferros gravados a ouro na lombada. Sem capas de brochura.Exemplar em bom estado de conservação. Pastas com defeitos marginais.
Raro.
Indisponível
Sem comentários:
Enviar um comentário