Edição popular do "clássico" de André Brun, publicada pela APR na apreciada colecção Bom Humor.
"Sousa Lopes desenhou na primeira linha dum sector nessa altura sofrivelmente agitado como se estivesse no seu atlier da Rua Mallebranche. Apenas, de quando em quando, perguntava muito delicadamente a um fachina, que passava com uma panela de rancho, se porventura estava ali perturbando o serviço... À sua presença na trincha deve-se um acréscimo de trabalho verdadeiramente apreciável. Apenas ele se instalava a cavalo sobre uma cadeira para desenhar um canto do Pátio das Osgas, logo a um sinaleiro apetecia fixar um fio solto, um estafeta lembrava-se de limpar as passadeiras, o cozinheiro vinha rachar lenha para a porta do seu cubículo, os impedidos engraxavam com furor as botas dos patrões e viu-se este caso estupendo do Menino dos Holofotes, criado de quarto do tenente sinaleiro e marau que nunca na sua vida fizera coisa nenhuma senão andar enrodilhado num cache-col de estimação, pegar numa picareta e agitar-se numa actividade febril. É que todos «queriam ficar no retrato».
E, com o seu sorriso fino, piscando os seus olhos míopes, procurando a linha e o tom, Sousa Lopes ia recolhendo para a Posteridade os detalhas daquela ruína tão pitoresca onde viera acolher-se. [...]
Das minhas melhores recordações da guerra, uma das que mais profundamente me impressionaram e me sensibilizaram mesmo foi a convivência com Sousa Lopes, ali nas linhas, nas barbas do «Fritz». O corpo expedicionário foi infeliz e mal servido em muitos dos seus aspectos. Foi felicíssimo no seu pintor. De toda a documentação artística a dele ficará porque foi sinceramente vivida e inteligentemente raciocinada. Depois Sousa Lopes soube ser um óptimo soldado. Todos o pudemos verificar e foi assim que ele entrou nos nossos corações. Os lanzudos, ao vê-lo trabalhar à beira da terra de ninguém, miravam para o lado do boche e Folgadinho murmurava: - «E se vem um morteiro?...» Todos pensávamos o mesmo, juntávamo-nos em sua volta como para o proteger e de nós todos o mais sereno era ele. Se alguma vez interrompia o trabalho, era apenas para dizer com a sua voz de pessoa muito bem educada:
Não sei se estou incomodando..."
(excerto de Um pintor nas "trinchas")
André Brun (1881–1926). “Descendente de franceses emigrados
em Portugal, ingressou no exército, na arma de Infantaria, após lhe ter sido
negada a entrada na Marinha, sua primeira escolha. Paralelamente à sua vida
militar, começou a colaborar na imprensa, nomeadamente no Novidades, e no
Suplemento Humorístico de O Século com grande êxito.
Diz-se de A Malta das Trincheiras que é um livro bem humorado sobre a participação portuguesa na I
Grande Guerra. Mas é muito mais do que isso. É um fidedigno relato ocular de
episódios da vida na frente de guerra, narrados de modo brilhante que nos
arrasta para o ritmo dos próprios ataques, ou para a pacatez do dia a dia de
quem esteve meses e anos nas “trinchas”, ou ainda nos torna em ansiosos
leitores que acompanham a angustiada espera noturna de um possível ataque
alemão. Em simultâneo, não podemos deixar de sorrir (e de nos rever) com a
caracterização do soldado português (Folgadinho, de seu nome): bem humorado,
conversador, rápido a aprender as 18 palavras essenciais para a sua
sobrevivência (e a “traduzir” à letra as que desconhece), corajoso, inventivo
na procura de soluções para a sua vida. Ou com a forma como critica as altas
patentes e a (des)organização do Corpo Expedicionário Português (veja-se,
por exemplo o capítulo “Repartição dos humoristas”). Tudo isto narrado com
graça e com o conhecimento directo de quem o viveu, ou como afirma o próprio
André Brun: “é apenas uma documentação pitoresca um relato do que eu vi
com os que a terra há-de comer, olhos da minha cara e mortos da minha pátria”."
(Ana Homem de Melo | Lisboa, GEO, Março 2015)
Exemplar brochado em bom estado de conservação. Capas sujas, com vincos.
Invulgar.
Indisponível
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