Raríssima edição oitocentista da Paráfrase dos Salmos, publicada ainda em vida da autora. O Tomo I foi tudo o que se publicou desta edição de 1833.
“A paráfrase dos salmos levada a cabo por D. Leonor de
Almeida Portugal constitui uma das facetas menos estudadas da sua obra: não só
não tem despertado o interesse daqueles que se debruçaram sobre a sua poesia,
como raramente surge mencionada na escassa bibliografia relativa às adaptações
e traduções do texto bíblico para a língua portuguesa. É possível que este
esquecimento se deva, em parte, à complexidade do tema: pelo facto de se tratar
de um dos livros mais antigos da Bíblia e sendo constituído exclusivamente por
poemas destinados ao canto, o Saltério suscita questões do ponto de vista
ecdótico, estilístico e exegético cuja complexidade constitui um desafio para
os estudiosos.
Existem três edições conhecidas da sua paráfrase –
publicadas respectivamente em 1817, em 1833 e em 1844 [Obras Completas em
edição póstuma] – revela que se tratou de um projecto desenvolvido em várias
fases.
Na exposição que se segue, centrar-nos-emos na relação da
Marquesa de Alorna com o texto dos salmos bíblicos. As informações que pudemos
reunir sobre o assunto até ao presente levam-nos a ter em conta dois aspectos
fundamentais: por um lado, a documentação existente permite situar o convívio
de D. Leonor de Almeida com o Livro dos Salmos, na sua juventude e, por outro, o
estudo comparativo das três edições conhecidas da sua paráfrase – publicadas
respectivamente em 1817, em 1833 e em 1844 – revela que se tratou de um
projecto desenvolvido em várias fases, no qual a autora trabalhou ao longo de,
pelo menos, duas décadas. No tratamento destes dados, procuraremos reflectir
acerca do significado que poderá ter a paráfrase dos salmos levada a cabo por
Alcipe no contexto da sua biografia, no conjunto da sua obra, e no âmbito mais
vasto da sua estratégia de actuação enquanto mulher de letras.
A primeira publicação de poemas de Alcipe inspirados no
saltério intitula-se Parafrase a vários psalmos e verá a luz em 1817, na
mesma casa editora (a Impressão Régia. A obra inclui apenas 11 textos: os sete
salmos ditos penitenciais (VI, XXXI, XXXVII, L, CI, CXXIX e CXLII), os salmos
CXXX, LXXI e XLIV e o «Cântico de Moisés» (Cantemus Domino, gloriose enim
magnificatus est.) que era considerado pelos preceptistas, como vimos, como um
exemplo sublime.
Entre esta primeira abordagem do saltério feita pela
Marquesa de Alorna e a Paraphrase dos Salmos que a mesma publicará em 1833,
decorre um amplo lapso de tempo durante o qual se verificaram profundas
mudanças na organização política e na mentalidade dominante na sociedade portuguesa.
A religião constituirá, durante as décadas de 20 e de 30 um grande tema de
discussão, que envolverá todas as forças políticas e se reflectirá,
necessariamente, num renovado interesse pela divulgação do texto bíblico.
Em 1833, ano da vitória das forças liberais, foi dada à
estampa a Paraphrase dos psalmos em vulgar por Alcippe ou L. C. d’O. hoje M.
d’A. Trata-se de uma obra que inclui as paráfrases em verso de cinquenta
textos do Livro dos Salmos do qual supomos ter sido impresso apenas o I volume.
D. Leonor de Almeida cumpria então 83 anos… […]
Recorde-se que apesar da sua avançada idade, a Marquesa de
Alorna não se encontrava ainda, na época, completamente retirada da vida
social. Sabemos por testemunhos contemporâneos que Alcipe frequentou e
organizou em sua casa (e em casa do Marquês da Fronteira, D. José Trazimundo de
Mascarenhas, seu neto) reuniões de poetas e de intelectuais pelo menos até
1836. Sabemos, assim, que na década de 30 a Marquesa era uma figura central da
sociedade lisboeta, reconhecida por várias gerações de homens e mulheres de
letras de diferentes percursos ideológicos, que viam a frequência do seu
círculo de relações como um sinal de prestígio e de legitimação do talento. É,
pois, numa época em que goza de renome e de aceitação nos meios intelectuais, e
numa situação muito diferente daquela em que dera à estampa a sua primeira
abordagem poética dos salmos, que D. Leonor publica a paráfrase completa do
Saltério.”
(ANASTÁCIO, Vanda, «Alcipe e os Salmos», Via Spiritus, n.º 12 (2005) 109-153)
"Longos annos ha, que
os Sabios, tanto Nacionaes como Estrangeiros, anciosamente pedião a publicação
das Obras d’ALCIPPE; sem que até agora podessem alcançar da sua modestia
Poeticos ensejos inspirados só para mitigar as magoas, e trabalhos da sua vida.
Finalmente as instancias e rogos das suas Filhas, conseguirão tão precioso
Thesouro, com o qual se propõe enriquecer a Literatura Portugueza. Talvez os
pouco entendidos as accusem de cegueira e parcialidade; porém a opinião bem
conhecida de Filinto Elysio, de Bocage, e mil outros Literatos, assim como a do
insigne Prégador Regio Frei José Leonardo da Silva, da Ordem dos Prégadores,
que lendo, e relendo com satisfação a bella Paraphrase dos Psalmos, que hoje se
publica, exclamou
Quae David Hebreo, Luso tu carmine cantas:
Coelum Musa David, Alcippe ipse David!
arrojão longe de nós
toda a suspeita de uma tal accusação. Acceitai pois benigna, ó Patria, o dom
que o filial amor vos consagra! Haver-vos servido, como nos competia, seja o
nosso prémio; assim como será sempre a nossa gloria o termos nascido
Portuguezas, e
Filhas d’Alcippe."
1.º de Janeiro de 1833.
(Dedicatoria á Patria)
D. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre, Marquesa de Alorna (1750-1839). "Nasceu em
Lisboa, em 31 de Outubro de 1750 e faleceu na mesma cidade a 11 de Outubro de
1839. Era a primeira filha de D. João de Almeida Portugal, 4º Conde de Assumar
e 2º Marquês de Alorna, e de D. Leonor de Lorena e Távora. Neta dos Marqueses
de Távora, supliciados publicamente em 1759 por suspeitas de envolvimento no
atentado ao rei D. José I ocorrido em 3 de Setembro de 1758, D. Leonor foi
encerrada aos oito anos de idade, juntamente com a mãe e a irmã, D. Maria Rita,
então com seis anos, no mosteiro de São Félix, em Chelas, nos arredores de
Lisboa, no dia 14 do mesmo mês. Seu pai havia sido preso em 13 de Dezembro na
torre de Belém tendo sido posteriormente transferido para o forte da Junqueira.
A família permaneceria encerrada e separada durante dezoito anos, tendo sido
libertada apenas em 1777, depois da morte de D. José I e do afastamento do
Marquês de Pombal. […] A circunstância de ter crescido no convento marcou
profundamente a personalidade e a obra de D. Leonor de Almeida, que viveu de
forma dramática a separação do pai e do irmão, D. Pedro, colocado sob tutela
directa do Marquês de Pombal, e se representará a si própria na sua obra
poética, como um ser triste, marcado pelo infortúnio, vítima do despotismo e da
tirania. […]
Tal como aconteceu com a grande maioria dos poetas seus
contemporâneos, D. Leonor de Almeida não publicou em vida a sua poesia, que foi
dada à estampa, em 6 volumes, por suas filhas Henriqueta e Frederica, em 1844,
cinco anos depois da sua morte. Com o título Obras Poéticas de D. Leonor
d’Almeida Portugal Lorena e Lencastre, Marqueza d’Alorna, Condessa d’Assumar e
d’Oeynhausen, conhecida entre os poetas portuguezes pello nome de Alcipe, esta
publicação inclui, para além das obras poéticas originais da poetisa, as suas
traduções de Claudiano, Gray, Goethe, Bürger, Cronek, Metastasio, Milton,
Thompson, Goldsmith, Lamartine, Klopstock, Wieland e pseudo-Ossian. A obra de
Alcipe é extensa e multifacetada e constitui uma preciosa fonte de informações
sobre os parâmetros estéticos que orientaram a poesia portuguesa na segunda
metade do século XVIII e inícios do século XIX. Nela confluem, a nível
estilístico, práticas herdadas da visão reformadora dos poetas da Arcádia
Lusitana (1756), com outras opções formais mais antigas, que seriam retomadas
pelos poetas da Academia de Belas Letras (1789), como a glosa, o improviso em
estrofes de redondilha e as quadras de rima abcb, idênticas ás utilizadas nas
modinhas e lunduns popularizados por Domingos Caldas Barbosa. Filha do
Iluminismo, a Marquesa de Alorna entenderá a prática poética como uma
actividade de utilidade moral e pedagógica, tal como acontecerá, aliás, com os
escritores portugueses das gerações seguintes, que repetirão os mesmos pontos
de vista até meados do século XIX (referimo-nos a Almeida Garrett, a Herculano
e a António Feliciano de Castilho, por exemplo). É nesta linha que poderemos
enquadrar as múltiplas referências aos progressos das ciências disseminadas na
sua obra, as exposições em que procura demonstrar a compatibilidade entre a fé
católica e as leis da Natureza (de que é exemplo cabal a Epístola a Godofredo),
bem como a composição do poema Recreações Botânicas, as traduções da Arte
Poética de Horácio, do Essay on Criticism de Pope, a paráfrases em verso de
todo o Saltério e, até, as traduções de alcance político e teológico, como De
Bonaparte e dos Bourbons de 8 Chateaubriand e o Ensaio sobre a Indiferença em
Matéria de Religião de Lamenais dados à estampa em 1814 e em 1820,
respectivamente. Com estes temas de reflexão convive, como aliás sucede com a
generalidade dos poetas portugueses que escreveram na viragem do século XVIII
para o XIX, a expressão da sensibilidade característica do século XVIII
europeu, ou seja, o gosto particular pela descrição e encenação dos afectos que
escapam ou resistem ao controle regulador da razão. É nesta linha de pensamento
que devem ser situados, segundo cremos, os autoretratos pungentes em que o
sujeito de escrita se representa como um ser perseguido pela desgraça, as
descrições da natureza em termos melancólicos ou tenebrosos, o comprazimento na
celebração ou encenação da morte, da noite, da doença, da dor e das lágrimas,
tão frequentes na obra poética de Alcipe que lhe valeram o ser classificada
como poetisa pré-romântica nos anos 60 do século XX. Contudo, uma visão global
da sua produção literária que tenha em conta, simultaneamente, a prática dos
poetas seus contemporâneos e daqueles que se lhe seguiram, parece indicar que
tanto o gosto pelas regras, temas e motivos clássicos, como as manifestações da
sensibilidade estão subordinados, nos seus textos, a uma visão do mundo
orientada pelos parâmetros civilizacionais do Iluminismo, que encaram a razão e
a virtude como entidades reguladoras dos afectos e a poesia como uma actividade
ao serviço do ideal pedagógico de educação para a cidadania.”
(ANASTÁCIO, Vanda in www.fronteira-alorna.pt/pdf/biografia_alcipe.pdf)
Exemplar brochado em bom estado geral de conservação. Capa original aposta sobre a capa da protecção em brochura que reveste o livro. Mancha de humidade transversal a toda a obra (desvanecida na maior parte do miolo), com particular incidência nas primeiras e derradeiras páginas do livro.
Muito raro.
90€
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