FRANCO, Chagas - AS SACRIFICADAS (memorias duma madrinha de guerra). Lisboa, Livraria Editôra Guimarães & C.ª, [1918?]. In-8.º (18 cm) de 255, [1] p. ; E. 1.ª edição.
Relato pungente, verídico, da saga de uma moça portuguesa - Suzana - que vai ao encontro do namorado, um oficial português do C.E.P., de licença em Paris, seguindo depois com ele para a Flandres, onde fica instalada a 20 kms do front. A história acaba mal. Dois meses depois, Fernando de Ataíde - o noivo da rapariga - encontra-se preso ao leito num hospital de Mervillle, ferido de morte nos combates que antecederam a batalha do Lys; por se recusar a abandonar a cabeceira do rapaz e bater em retirada com os demais, Susana foi importunada e seviciada por soldados alemães, sendo mais tarde resgatada pelas forças inglesas.
A Segunda Parte é integralmente dedicada à correspondência de Fernando para Susana- não censurada - aqui reproduzida.
"Uma noite, no pequenino hospital de Dohen, entre os dois habituais bombardeamentos de Saint-OMer, contaram-me esta impressionante historia.
Tempos depois, em Paris, conheci a admiravel mulher que coligia as «Memorias» que vão ler-se: ela era tão santa na sua resignação como tinha sido nobre no seu sacrificio.
Nada, ou quasi nada, tive de alterar nas suas notas tão documentadas pela dôr, tão vividas, tão humanas, tão flagrantes: elas tinham sido a esperança, a anciedade, o frémito, a agonia de cada minuto do seu coração; elas exprimem a vida daqueles tragicos tempos - elas são a verdade
Possa a comoção dos meus leitores engrandecer a minha homenagem - a homenagem do meu respeito alargado do luto dessa mulher sublime ao de todas aquelas que «sofrêram para a redenção do mundo», de todas que, como ela, fôram sacrificadas."
(Preâmbulo)
"Meu tio, já no estribo, abraçára-me, beijára-me quasi rudemente, com uma lagrima na face:
- Adeus! Juizo e boa fortuna...
Era noite já; e, debruçada á portinhola, subito comovida, eu via-o ainda á luz dos arcos voltaicos, com as suas malas e o seu casacão de viagem, muito amplo, côr de mel, ao longo dessa gare de Bordeus, onde êle tivera de deixar-me.
Ficava assim completamente entre estranjeiros; e o meu sonho parecia-me agora mais temerario e mais vão e a minha coragem mais frouxa, quási fatigada já - e todo o nobre impulso do meu coração, correndo após o amor, uma quimera apenas distinta num mundo de quimeras. [...]
Eu ia só, aos vinte anos, nesse país que o meu espirito havia tanto amava, em demanda do meu amor saudoso - mas ele estava áquela hora bem longe sem me poder valer no fundo ignorado de uma trincheira escura, e nos sucessos daquela noite claramente eu via a dissolução desse país em guerra, os ultrajes que me esperavam."
(Excerto da Primeira Parte - Cap. I)
"Hoje de manhã, quando desci á primeira linha, num intervalo breve da trovoada, sob o sol de fogo, o Patachão aproximou-se de mim, tristemente:
- Deixe-me saltar o parapeito, deixe-me ir busca-lo...
Logo o Evaristo, o cabo de olhos negros, habitualmente tão silencioso e tão grave, me explicou o caso estranho: durante a noite, um dos da patrulha, o José da Roleta, patricio do Patachão, tinha lá ficado sem dizer ai, crivado pelos estilhaços. E a sessenta metros apenas, no meio dos arames contorcidos, emaranhados pela metralha, negros das chuvas e dos gazes, eu via o cadaver com os baços abertos, a face caída na lama, todo inteiriçado, enorme, singular no seu abandono.
- Deixe-me ir buscá-lo...
Neguei. Afastei-me contrariado. [...]
- Os ratos vão comê-lo. Deixe-me ir buscá-lo.
E eu fui ao telefone pedir para o batalhão a licença necessaria. Mas o major declinou a responsabilidade, telefonou para a brigada. Por fim, resmungadamente, veio o indeferimento que eu esperava.
Então, num desespero que eu não pude conter, que ninguem podia conter, o Patachão saltou no parapeito, só e sem armas, prescrutando, um momento com os grandes olhos meridionais, vagamente loucos, a trincheira inimiga. Depois começou a correr pela Terra de Ninguem, através dos charcos e das crateras, desesperadamente, abrindo as enormes pernas em passadas tão vivas, tão loucas, como se, aproveitando o assombro de todos nós, fôsse a desertar.
Alguns tiros isolados vindos do parapeito contrario não conseguiram detê-lo; estava já no meio dos arames, junto do cadaver.
Depois, um momento, todos vimos a face do morto soerguer-se na lama, os seus braços agitarem-se, logo cairem como duas hastes rigidas, pesadamente, em cruz. [...]
Mas era evidente que um homem só nada poderia contra aquela imobilidade marmorea, tão querida e tão pesada.
Então o Evaristo correu a ajudá-lo, sem uma palavra, no seu grave silencio - e eu quasi lhe gritei um «bravo!» ao vê-lo correr assim.
Todos os meus homens estavam agora de pé no parapeito, palidos, ansiosos, esquecendo o perigo, esquecendo as armas! E lá em baixo, defronte de nós, na trincheira alemã, outros soldados erguiam-se, porventura palidos tambem, esquecendo tambem a guerra, abandonadas tambem as armas. Depois, quando o morto foi transportado enfim, livida a face, as pernas já tumefactas, bamboleantes, escorrendo lôdo dos charcos fétidos, os soldados alemães e os nossos simultaneamente fizeram a mesma continencia nobilissima nessa funerea tregua inesperada, triste confraternização da morte."
(Excerto da Segunda Parte - IV)
Sezinando Raimundo das Chagas Franco (1878-1944). Militar, escritor, político e professor português. Major de Infantaria, integrou as forças do C.E.P. em França, onde combateu. Foi professor de História no Colégio Militar e "leitor" de Língua e Literatura Portuguesa na Universidade de Rennes, França (1921).
Encadernação em meia de pele com ferros a negro e a ouro na lombada. Sem capas de brochura.
Raro.
Com interesse histórico.
85€
Reservado