MOREIRA, Henrique - O GENIO DAS TREVAS. Porto, Typographia de Manoel José Pereira, 1873. In-8.º (20x13,5 cm) de 231, [1] p. ; B. 1.ª edição.
Obra muitíssimo curiosa sobre a superstição na província, terreno fértil para o autor discorrer sobre o medo e "respeito" enraizado nos hábitos das populações da época.
Romance de alguma maneira histórico, sobejando as evocações do passado, cuja acção decorre no final da década de 30 do século XIX. Entre amores, desamores, ciúme e inveja, dá-se um misterioso envenenamento, e um religioso - o padre Romeo -, vai sentar-se no banco dos réus. Tudo condimentos para um romance agradável, bem escrito, e de certo modo, surpreendente, dado o relativo anonimato do autor.
Raro e muito interessante.
Dedicado pelo autor "A seu sogro, o E.mo Snr. Barão da Ponte de Quarteira".
Nada foi possível apurar acerca de Henrique Moreira. No entanto, a BNP dá notícia
do presente romance com a indicação "sem informação exemplar", e dum
outro - Os combatentes : romance de costumes algarvios. Época 1828 a 1834 - publicado em 1884. Apesar de ambos os livros terem sido impressos no Porto, o prefácio d'O Genio das trevas é datado de "Faro, 1873" e oferecido ao Barão da Ponte de Quarteira, e no outro caso, o assunto do livro reporta aos "costumes algarvios", evidenciando forte ligação do autor ao Algarve.
"Generalisar a civilisação politica, moral e religiosa pelo povo, dar ao romance a feição regeneradora d'uma philosophia popular, facilitar a elaboração dos conhecimentos uteis, elucidar o culto, substituir o codigo pela luz da consciencia, abater o preconceito, sublimar o direito da unidade social, moralisar os costumes, organisar a bem da sociedade pela analyse das instituições, harmonisar o bem da familia pela santificação dos affectos, tal é o fim dos nossos trabalhos litterarios."
(Prefacio)
"Aproxima-se o equinoxio da primavera do anno de 1837.
Enleva-se a alma em aspirar a embalsamada athmosphera da mais ridente estação do anno, e emballa-nos a solidão dos campos em mellifluo gozo. O sentimento, cheio de suave melancolia, embriaga-se com a exhalação odorifera dos vegetaes. A harmonia do infinito ergue um canto á deusa Ceres."
(Excerto de A aldeia: I - Sensações campestres)
"Aproximava-se, como dissemos, a primavera de 1837.
Haviam decorrido quatro annos, que se ultimara o memoravel cerco do Porto, e a sua recordação ainda vivia muito impressa no animo dos filhos da cidade virgem.
Um d'esses espiritos privilegiados, que aos vinte e dois annos podia dizer-se philosopho e poeta, abandonava a cidade, que guarda como religioso monumento o coração de um grande rei das novas eras liberaes, e retirava-se, como o cantor das Orientaes, para a athmosphera embalsamada com a fragancia dos campos.
Era filho de um apostolo dedicado á doutrina de Lincoln. Detestava tanto Mably como o absolutismo realista. O pobre velho tinha sido victima da sua dedicação. [...] Conta-se, que, ao extinguir-se o sopro vital do bom velho liberal, se voltara para o seu companheiro d'armas e amigo intimo, o sargento Alves Macedo, fallecido em 1848, e que, com o peito atravessado por uma bala, só podera dizer-lhe: - «Diz a meu filho que morri pela liberdade.» E morreu pronunciando esta santa palavra regada com o sangue de inumeras victimas nas dissenções politicas da terra.
O filho d'este homem patriota e liberal, chamava-se Celestino de Campos. Tinha, como dissemos, abandonado a cidade do Porto para se entregar á solidão campestre, fixando a sua residencia n'uma pequena povoação situada a pouca distancia do seu berço natalicio."
(Excerto de II - Um clarão de aurora)
"Celestino começava a ter certo predominio sobre os que o conheciam.
Ia creando a reputação de bom homem
Dizia-se na phrase d'aquella boa gente: - é um rapaz de juizo.
Ter bom senso aos vinte e dois annos é uma virtude recommendavel.
O parocho da capella da aldeia proxima, homem cujas cans denunciavam perto de setenta primaveras, modelo de sacerdotes, e sinceramente religioso, dizia um dia, em que conversava com um grupo de homens e mulheres, apontando para Celestino:
- Vedes aquella creança? É mais velho do que eu!
Todos entenderam o sentido d'aquellas palavras.
Em 1837 não existia a lei do ensino primario obrigatorio, e ainda hoje não existe, embora seja uma necessidade, que a civilisação urgentemente reclama. [...] Nas aldeias, como é natural, fazia mais sentir-se esta ausencia de luz. Grassava ahi muito a febre da superstição. A ignorancia acclimava as sombras do sepulcro, e os sonhadores multiplicavam as faces do prisma ideal das suas tetricas visões. [...] Reinava, portanto, muita imaginação supersticiosa na aldeia, aonde Celestino fôra buscar lenimento aos seus soffrimentos moraes.
Acreditava-se, com a maior ingenuidade e com a mais lhana fé, na existencia de espectros assustadores. Era rara a pessoa, que não confessasse ter visto alguma vez um d'esses singulares duendes, que a crença nescia veste com as mais fantasticas côres. Esses idolatras do invisivel, poetas de fantasia lugubre, tinham o magico poder de observarem sem ver. Similhavam cegos a contemplarem a aurea luz do sol.
É assim que, nas sombrias paginas da historia religiosa, se ergue um culto ao milagre.
Entre as tradições que mais vogavam, não passaremos em silencio uma, para apreciarmos até onde chegaca a credulidade popular. [...]
Eis a tradição:
«Foi n'uma noite de Fevereiro. O ceo estava limpo, e a lua reflectia a sua melancolica luz sobre as verdes collinas. Deu meia noite o sino da capella. De repente algumas nuvens d'aspecto carregado assomaram ao horizonte. Um furioso vendaval fez tremular os combros das florestas, que se agitavam ao longe. As nuvens ascendiam rapidamente, e pouco depois toda a cupola celeste estava negra. Passados momentos rebentou um formidavel trovão, cujo eco pareceu repercutir-se morosamente nas abobadas celestes, e um relampago encheu de luz a athmosphera. Fremiu cada vez mais furioso o trovão, e immensas vagas de fogo inundaram o espaço. Então, viu-se cahir no cemiterio um raio, sobre o jazigo d'uma pobre velha, que havia sido sepultada, fazia exactamente um anno na noite d'este acontecimento.
«Do sepulcro soltou-se um rouco gemido, que abalou os ares d'um modo funebre. Era triste e sinistro como o piar de um mocho. Em seguida ergueu-se um eburneo espectro com os olhos animados e deslumbrante chama. Todos se encheram de novo e extranho terror em presença da pallida visão erguida tetricamente do terreo leito. Mas cresceu o pasmo, quando viram o espectro caminhar silencioso, e aproximar-se a passos vagarosos das habitações campestres, fazendo gemer a terra debaixo de seus pés.
«As donzellas esconderam-se turvadas de pavor, e os homens mais corajosos tremeram, sem poder encarar a sestra visão.
«O sino da capella dobrou a finados n'aquella hora lugubre. O espectro medonho começou a crescer descomedidamente, e converteu-se n'um formidavel gigante. Seguiu, depois, por uma estreita senda, aonde habitava a filha da pobre velha, que havia morrido no anno anterior. [...]
«Chegou, finalmente, á porta do humilde legurio, aonde morava a filha da pobre velha. Bateu lentamente. Ninguem respondeu. [..] Bateu segunda vez, não lentamente como da primeira, mas até com certa violencia. Do interior da casa respondia o mesmo silencio.
«Rugiu então um inescrutavel fragor. O phantasma desappareceu, e ouviram-se distinctamente estas palavras:
- «Se não queres, minha filha, que esta alma errante vá soffrer a agrura das penas infernaes; se desejas poupar-me os mais crueis supplicios, vai cumprir dentro em tres dias a promessa, que tu sabes haver eu feito em vida: ha um anno que adejo pelos ares, e o meu socego eterno depende de ti.
«O ceo tornou-se depois subitamente sereno, e restabeleceu-se o socego na aldeia. Mas dizem que n'essa noite ninguem conseguira dormir. A impressão tinha sido muito violenta para deixar de infundir um sincero terror por todo o povo da aldeia.
«Houvera, porém, uma pessoa mais violentamente impressionada. Fôra a filha da pobre velha. A promessa em que o espectro fallava, devia cumprir-se no curto prazo de tres dias, e a filha era muito pobre. Que podia fazer a infeliz donzella? De nada lhe valeram os seus esforços, nem os das pessoas devotas, que se compungiam da sua penosa situação. A promessa ficou por cumprir. A desgraçada pastora não conseguira dormir um só instante n'esses tres dias. Havia-se tornado pallida como um cadaver.
«Expirou o praso fatal. Quando o sino da capella dava a ultima badalada da meia noite, a donzella estrebuxava na angustia d'um derradeiro suspiro.
«Na manhã do dia seguinte foram encontral-a morta. [...]
Tal era a tradição que vogava na aldeia, e de que Celestino teve logo conhecimento, como vamos ver."
(Excerto de III - A superstição)
Exemplar brochado em bom estado geral de conservação. Cansado. Capas frágeis com defeitos e pequenas falhas de papel marginais. Interior correcto.
Raro.
Indisponível