LOBATO, Gervasio - A PRIMEIRA CONFESSADA. Chronica da actualidade. Lisboa, David Corazzi - Editor : Empreza Horas Romanticas, 1881. In-8.º (20,5x13 cm) de 447, [3] p. ; E.
1.ª edição.
Interessante romance de cunho realista, baseado numa história verdadeira(?), sendo a maioria dos personagens "secundários" da "trama" ilustres e conhecidos homens do meio literário e social da época. Nas palavras do autor a David Corazzi, o editor, trata-se de "uma chronica da vida moderna, scenas e caracteres copiados do natural, presos entre si por uma acção ligeira, facil, natural e verdadeira, buscando um desenlace simples n'uma anecdota conhecida". Bernardo, um homem-tipo do seu tempo, bem parecido, com acesso às cadeiras do S. Carlos e salões melhor frequentados da capital, "desencaminha" a bela viscondessa da Ribeira dos Carinhos. No final, o desinteresse do cavalheiro pela pela dama vai provocar uma reacção desta, de tudo ou nada, que culmina num equívoco dramático, sendo desvendado o título do livro num final algo insólito.
Obra bem redigida, rara e muito curiosa.
"Era em 1876, em pleno inverno a valer, rijo, sério, muito olhado, como todos os invernos que se presam, um inverno muito decente para uso d'uma capital de segunda ordem.
Os rios sahiam dos seus leitos para cumprimentar o tufão que passava, as velhas arvores gigantes davam cambalhotas em sua honra, e Lisboa Dançava gravemente os lanceiros tendo por «vis-à-vis» a caridade vestida pela Marie, penteda pela sr.ª Camilla, e estendendo uma das mãos á esmola e a outra á «grande chaine».
Foi um bello tempo para a gente elegante da terra esse inverno: o pé andava ligeiro e a consciencia leve; accumulava-se o serviço de Deus com o de Satanaz; descobrira-se a maneira de fazer uma boa acção e uma marca de cotillon ao mesmo tempo, de ganhar o ceo com acompanhamento do Macario, e de ir valsando por ahi acima até as portas que S. Pedro guarda."
(Excerto de I - Preziozi)
"Quando chegou á porta do theatro do Principe Real, toda vermelha e quente de ter descido a escada n'um salto, a viscondessa da Ribeira dos Carinhos não encontrou a esperal-a o seu coupé.
- Vá-me buscar uma carruagem, ordenou ella, irritada, a seu marido, que a seguia, escondido sob uma montanha de rendas e agasalhos. Depressa! Em chegando a casa é logo o cocheiro para a rua.
- Oh! filha, mas o cocheiro não advinhava que nós sahiamos antes...
- Pois não se fosse embora... ficasse aqui á espera que era a sua obrigação.
- Oh! menina, mas os cavallos...
- Os cavallos... os cavallos! repetiu ella, n'uma grande irritação nervosa importa-se mais com os cavallos do que comigo. Quero já aqui um trem...
- Mas põe a capa... observou amavelmente o visconde pondo-lh'a nos hombros.
- Põe-n'a tu! gritou ella, com um arremesso, atirando a capa para cima do marido que ficou envolto n'ella.
E sahiu só, estouvanada, furiosa, pela rua Nova da Palma fóra.
- Ó menina! Ó menina! Onde vaes tu!... Olha!... põe ao menos a manta no pescoço, anda por ahi muita doença... Onde vaes!... onde vaes tu Suzanna!... balbuciava o pobre do marido correndo atraz d'ella, com os agasalhos levantados na mão direita, muito erguida, para os não roçar pelo chão.
E os sefarrapados da porta do theatro riam-se muito d'elle trocando uns com os outros ditos trocistas e ordinarios.
- Onde vaes! tornou elle a repetir, alcançando por fim sua mulher que parára um momento, voltando-se para traz á sua espera.
- Vou buscar um trem, visto que tu és um banasola que nem para isso serves, respondeu-lhe ella com uns modos muito seccos, com uns ares muito enjôados e despresa-dores.
- Mas se não havia ali nenhum... Que mania sahir do thetaro no meio... Põe a capa, faze-me esse favor... interrompia elle com uma insistencia muito carinhosa, acompanhando-a quasi a correr... Que mal te faz a capa... E a peça perecia-me bem bonita. Tem muito apparato...
- Pois se queres volta para lá, eu vou bem para casa sósinha...
- Eu ia lá ao theatro sem ti... O diabo leve o theatro e o diabo leve os francezes...
- Cale-se!... Está a passar gente e hão-de pensar que é algum arrieiro que vae aqui ao meu lado... interrompeu a viscondessa n'um tom colerico que o fez logo calar."
(Excerto de II - Um capitulo de Belot)
Gervásio Jorge Gonçalves Lobato (1850-1895). Figura muito popular do meio teatral e literário lisboeta da segunda metade do século XIX, nasceu a 23 de maio de 1850, em Lisboa, e morreu a 26 de maio de 1895, na mesma cidade. Autor, num curto espaço de tempo, de uma obra extensa e variada, foi jornalista, tradutor, comediógrafo e romancista, tendo sido comparado a Rafael Bordalo Pinheiro quanto ao humor e ao talento de caricaturista. Colaborou em vários periódicos da época, como o Diário de Notícias, o Diário da Manhã, o Jornal da Noite e O Ocidente, onde sucedeu a Guilherme de Azevedo na rubrica "Crónica dum ocidental". Os contornos realistas da sua crítica de costumes, exercitada nos romances e nas peças de teatro, são amenizados pelo tom displicente e pelo humor revisteiro.
Encadernação coeva meia de pele com ferros gravados a ouro na lombada. Sem capas de brochura.
Exemplar em bom estado geral de conservação. Cansado, com cantos desgastados. Apresenta pequeníssimo orifício de traça que se prolonga da f. ante-rosto até à página 24.
Raro.
45€
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